jueves, 23 de marzo de 2017

Introducción.....


um



Julguei durante longo tempo ter sido a única pessoa neste mundo a dar-se conta d'O insecto imperfeito.
Não era um livro particularmente chamativo. Tinha uma capa alaranjada, um desenho a negro, tipo um grilo dentro de uma gaiola nem por isso muito bem desenhados. A Gradiva não tinha feito um esforço muito notório.

O nome da autora, Beatriz, provavelmente a Bia como a tratariam os amigos, e os apelidos Lamas de Oliveira pelo lado familiar, não diziam nada. Porque é que se compra um livro destes, é um mistério. Haverá um Anjo da Guarda dos leitores empedrenidos? Sabem? Aquele que nos puxa pela manga e, sem contemplações, nos grita ao ouvido:

- Leva esse, ó estúpido!
O desatento comprador agarra-o, um pouco ao calhas, entala-o entre outros mais sonantes: um policial que nunca mais recordará, um importante autor norte-americano com direito a página e meia nos suplementos literários e os poemas do Nuno Júdice.


dois




E a leitura, quando chega, é surpreendente. Uma história de sedução, quase os anos de aprendizagem de um velho abusador.

Lembrou-me uma amiga que, num daqueles dias desesperados, perguntava: «Mas porque é que os homens são tão aproveitadinhos? Não nos querem, mas aproveitam sempre uma queca de borla...»

Foi gentil e poupou o meu amor-próprio: não disse «vocês os homens». Eu era muito jovem, muito apaixonado, casado há pouco tempo, e ter-me-ia magoado. Mas fiquei a pensar. E voltei a pensar. E penso de cada vez que a barca da paixão cruza a linha do horizonte e o gajeiro grita de lá de cima: «cachopa à vista!». É uma das minhas dúvidas mais recorrentes. Porque é que nós, os homens, tínhamos de ir a todas?

Emprestei o livro à esquerda e à direita (honnit soit...).

Procurei outros exemplares pelas livrarias para o oferecer. Fiz a sua apresentação numa escola secundária.

E, tirando a minha modesta pessoa, só encontro outras duas que parecem ter reparado n'O insecto imperfeito.


três





Uma delas acabo de a encontrar através de um motor de pesquisa: a Fernanda Botelho, que em 99 fez para a Gulbenkien a recensão do livro. Trancrevo como encontrei, se bem que, apostaria uma garrafa de bom tinto Duas Quintas contra uma de reles cola: a Fernanda Botelho, se tivesse sido ela, escrevia muito melhor do que isto:

"A obra está cuidadosamente escrita, com boa clarividência psicológica, mas o leitor? eu pelo menos, não entende lá muito bem a finalidade, o objectivo, a mensagem a recolher da leitura?..."

A Fernanda Botelho era uma mulher muito inteligente. Como tenho lido muito poucas, e muito poucos. Acredito que deixou estas perguntas para si própria, sem nenhuma intenção de fazer delas uma nota crítica. Mas é o que se encontra na net.



quatro



A outra pessoa que reparou no livro de Beatriz Lamas de Oliveira foi o Sérgio de Sousa que tem honrado este blog com a sua atenção (não muita) e sobre ele escreveu na revista «Leiamos» de Maio de 2000 (Edição de Editorial Escritor, Lda).

Com a devida vénia, transcrevo o que a este livro diz respeito:


"... Embirrei com o livro antes de o ter lido," escreve Sérgio de Sousa, "quando o vi numa livraria. Seria algum contraponto à novela de Júlio Moreira, O Insecto Perfeito? Folheei-o e não me pareceu. Romance, dizia-se. Com 98 páginas, apenas duas personagens principais? Resmunguei, apegado a antigos critérios de classificar as prosas.

Depois, de uma amiga, circunstancialmente colega de liceu da autora, ouvi o comentário: «É giro, achei-lhe alguma piada.» E assim se dá cabo, autenticamente esfrangalha um livro.

Por aspectos marginais, sem minimamente ter tomado conhecimento do seu texto, eu já embirrava com o livro.

Li-o e fiquei a gostar dele.

A primeira impressão foi: Que impacto teve uma relação amorosa na autora, que ela teve de vir dissecá-la na pele de extraterrestre.»



cinco



«O livro é mais profundo do que um ajuste de contas, é imaginativo e rigoroso.

Também existem mulheres que acalentam sonhos grandiosos e vagos, que levam a vida a imaginar êxitos, que jamais pensaram no que precisavam de fazer para os alcançar, que entretanto vão seduzindo homens que se deixam encantar pelos seus cantos de sereias e outros encantos mais palpáveis, e as vão sustentando, e depois essas mulheres acabam muitas vezes sós, sem amparo. Também há mulheres «pentacoladoras», e Beatriz Lamas de Oliveira não o ignora.

Mas não é delas que trata este seu livro, em que a protagonista desperta, com uma serenidade científica, da envolvência numa relação que nos relata com palavras precisas.»



seis



«A protagonista é uma extraterrestre colocada em Braga, num corpo de mulher, que ali se envolve sentimentalmente com um estrangeiro. Termo de duplo sentido, estrangeiro porque catalão, e porque, pelo menos para a protagonista, à partida estranho, o que comporta também múltiplos significados, desconhecido, esquisito.

Incarnada mulher, a extraterrestre representa o papel respectivo. A duplicidade da personagem vai servir a análise do envolvimento a que como mulher se presta, e a do distanciamento a que, como extraterrestre, dilucida a evolução do relacionamento.

E o jogo entre os comportamentos da extraterrestre e da mulher resolve-se numa síntese que é a missão.

Missão para cujo cumprimento a extraterrestre foi enviada à Terra, missão que é afinal o sentido «extraterrestre» da atitude feminina, de se deixar envolver e persistir numa relação com premissas para si erradas, empenhando-se numa transformação.»



sete


«Enquanto mulher, a protagonista inscreve-se na classe média superior, presta auditoria a empresas que preferem pagar caro a ela, para se verem livres de uma caterva de empregados a quem pagam pouco.

O estrangeiro é filho de uma prostituta, criado um pouco ao deus-dará, que foi passando pelo insucesso escolar, pelo «desenrascar-se» na tropa, e aprendendo expedientes de sobrevivência, «o valor dos favores como um capital de troca acumulável», «a usar o sexo, por um lado como afirmação das suas capacidades masculinas, por outro, como uma cenoura, que se vai acenando ao burro para o manter no bom caminho», confiando na sua experiência junto de mulheres carentes, a arranjar desculpas «para matar o tempo que era incapaz de utilizar», «em vez de envidar esforços para concretizar algum projecto de vida... a espraiar-se... em projectos de fantasia desinibida...» não se dispondo a desenvolver competências próprias, mas a aproveitar-se das dos outros, reclamando «direitos de proprietário em descanso merecido», desprezando todo o trabalho tido como feminino, revelando-se na realidade inábil, mas muito treinado a inventar desculpas para as suas incapacidades, nunca reconhecidas, antes sobrestimadas as capacidades, confundindo compartilhar com acomodar-se, aproveitar-se, julgando-se, ou agindo como se fosse, isento das obrigações comuns, insensível ao gostar e a compreender o desgosto, e por fim a repulsa, que isso provoca nos outros, o estrangeiro acabara vivendo sempre, afinal, à custa de sucessivas, temporárias, esperançadas amantes.»


oito




«A esta conclusão acabou por chegar a protagonista que, também ela, em espírito de missão, atinge contudo um momento em que quer apenas voltar a sentir que é responsável tão-só pela sua vida, que verbaliza que «duas pessoas não podem viver juntas só porque uma delas acha muito triste viver sozinha...»

O momento em que recusa um homem de quem tenha de tomar conta como um filho, em que quer ter uma relação «de igual para igual», com um homem responsável, com projectos e meios próprios, um homem cuja vida se não resuma à actividade de «pentacolar».



nove




«Beatriz Lamas de Oliveira, que ao longo da sua narrativa vai inserindo várias palavras com uma precisão cirúrgica, de que são exemplo as «tuas estupidezes», pag. 18, referindo-se aos trabalhos domésticos, «que quase nunca se atrapalhava» (o estrangeiro), referindo-se aos seus subterfúgios, e muitas outras, com especial destaque para os termos castelhanos, inventou ainda essa palavra conceptual, «pentacolar».

A «pentacolada» é um desporto radical imaginário, cuja prática requer um equipamento com cordas e ganchos, mas nada mais é precisado. O leitor, que já assistiu, pelo menos pela televisão, a largadas de pára-pentes, a escaladas alpinas, a gincanas de motocross, facilmente se identifica com esta actividade, que requer «audácia, esperteza, força, atributos masculinos», daí que surja como «a actividade masculina iniciática predominante». Em que, atrevo-me, permanentemente se oscila colado, dependente.»


dez




«A novela, prefiro chamar-lhe assim, de Beatriz Lamas de Oliveira, narra um caso extremo de vida de um homem que, na verdade, sempre se colou, e dependeu, pelo sexo, de mulheres que o foram temporariamente sustentando, oscilando entre umas e outras. Mas este caso extremo tem ressonâncias apenas ligeiramente atenuadas no machismo generalizado, e no comportamento típico masculino.

A relação homem-mulher, em que aquele que se pretende depositário da responsabilidade familiar, mas que se revela inábil na resolução de assuntos práticos e rotineiros da vida, imaturo, e a mulher acaba por arcar com o assegurar do dia-a-dia, o prevenir, o proteger, com paciência missionária, é um padrão ainda dominante.
(...)»

onze


«Pentacolada». Pois.
Tout communique, diria o Jacques Tatti.
Porque é que vocês os homens são tão aproveitadinhos, perguntava a minha amiga, há já muitos anos. Não creio que ela se lembre. Ainda bem, porque ela é uma Senhora.
Mas eu lembro-me, porque a dúvida foi ela quem a lançou. Receio não ter sido sempre um cavalheiro. Mas quem nunca praticou essa tal «pentacolada» que me atire a primeira pedra.

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La escalada..

http://www.bbc.com/mundo/noticias-40341091